sábado, 18 de fevereiro de 2017

o dia em que raduan enfrentou o guarda

O DIA EM QUE RADUAN ENFRENTOU A GUARDA

por Irajá Menezes

'Infelizmente, nada é tão azul no nosso Brasil. Vivemos tempos sombrios'.
Do começo ao fim de seu discurso, Raduan Nassar se posicionou sem meias palavras contra o golpe e seus cães de guarda.
'Não há como ficar calado', concluiu.
Lendo sobre a atitude do nosso grande escritor, lembrei de uma história com o Roberto Freire, mas não esse, da triste figura de ministro golpista. Refiro-me a Roberto Freire o psicanalista-escritor-teatrólogo-novelista, criador da Somaterapia e pai daquele moço que toca viola que é uma maravilha.
Esse Freire de que vos falo, não muitos sabem, foi jurado de todos os concursos da chamada 'Era dos Festivais', no período entre 1965 e 1972.
Foi Freire, por exemplo, quem comunicou à produção da Record, em 66, que Chico Buarque não aceitava ganhar de 'Disparada' (e aí, "deu" empate entre 'A Banda' e a música do Vandré).
É importante lembrar que eram dois os grandes festivais que aconteciam anualmente na TV, um na Record e outro na Globo. O da Globo tinha duas etapas, a nacional e a internacional. As duas primeiras colocadas da primeira fase defendiam o Brasil no certame internacional.
No Festival da Globo de 1972 - aquele que teve 'Cabeça', de Walter Franco, 'Fio Maravilha' com Maria Alcina e 'Eu Quero é Botar meu Bloco na Rua' (desclassificada!!!), de Sérgio Sampaio - dias antes da final nacional, Solano Ribeiro, o diretor artístico, recebeu de Walter Clark (chefão da Globo) a seguinte instrução: 'Os militares mandaram você afastar a Nara do júri'.
(continua em mais informações)



'Mas ela é presidente do júri', respondeu, inconformado, Solano. 'Ela me ajudou a levantar o conceito do Festival. E agora tem que tirar? Vão jogar o festival no chão'.
'Não tem jeito, ordem de militar não se discute', finalizou Clark.
Os militares impunham a saída de Nara Leão por não terem gostado de uma entrevista sua ao Jornal do Brasil desancando o que acontecia no país. Diante do impasse, Solano cedeu, concordando em destituir todo o júri brasileiro e antecipando a chegada dos estrangeiros que julgariam a etapa internacional.
Com um procedimento dessa natureza, a direção do FIC esperava inocentemente que ninguém chiasse. Mas nenhum dos jurados engoliu. Nara ficou revoltada afirmando tratar-se 'de um verdadeiro escândalo mudar-se as regras depois do jogo começado, uma grossura, um desrespeito'.
E foi aí que os jurados redigiram um comunicado para ser distribuído à imprensa.
Provavelmente por ser um destemido atuante em manifestações de caráter político, Roberto Freire foi designado pelos companheiros para entrar no Maracanãzinho na noite da final nacional do FIC no último domingo de setembro de 1972, penetrar nos camarins e subir ao palco para ler o comunicado que haviam redigido.
Fazendo-se passar por músico de um dos grupos, Roberto entrou no palco para exercer sua arriscada e ingrata missão de arauto.
Aproximou-se do microfone e estava lendo o início do manifesto quando sentiu-se agarrado.
Foi violentamente arrastado pelos seguranças da TV Globo que o conduziram a uma sala onde havia um grupo de policiais e um delegado que disse: 'Podem bater porque ele também é comunista'.
Diante da autorização, os policiais se regalaram batendo para valer, com socos e pontapés, jogaram-no contra a parede, pisaram em suas costas, aplicaram uma tremenda surra deixando-o estendido no camarim com fratura nos dois braços, no malar, em quatro costelas e uma couve-flor sangrenta em lugar do rosto.
Totalmente lúcido Roberto viu quando Boni e outros diretores chegaram com Nara, que vendo a cena, disse: 'Se vocês não lerem o comunicado, nós invadimos o palco e todos vamos ser espancados'.
Boni foi rápido no gatilho, passou os olhos no texto e disse: 'Se vocês tirarem esse primeiro período (falando mal da Globo) eu mando ler. Assim foi decidido. Roberto permanecia no camarim com enfermeiros enquanto o comunicado era lido por um locutor:
'Os integrantes do júri da fase nacional do VII Festival Internacional da Canção, cumprindo sua finalidade de apontar as duas composições que representarão o Brasil na final internacional, decidiram indicar as seguintes concorrentes: 'Cabeça', de Walter Franco, e 'Nó na Cana', de Ari do Cavaco e César Augusto.
Ao mesmo tempo que divulgam esta decisão, os membros do júri manifestam sua estranheza ante a decisão do Festival, destituindo-os sem qualquer explicação.
Consideram ainda sua destituição um ato arbitrário e altamente suspeito.
Rio de Janeiro, 30 de sembro de 1972.
Nara Leão - presidente - Rogério Duprat, Décio Pignatari, Alberto C. N. de Carvalho, Léa Maria, Sérgio Cabral, Guilherme Araújo, João Carlos Martins, Walter Silva, Roberto Freire, Mário Luiz e Big Boy'.
Na plateia, alguns policiais subiram as arquibancadas às carreiras arrancando uma faixa 'O júri de gringos foi dirigido' enquanto, nos bastidores, cerceavam os repórteres que desejavam entrevistar
Roberto Freire, seguindo as ordens do coronel Ardovino Barbosa que gritava 'Bota a imprensa pra baixo no pau'.
Essa história transcrevo do livro 'A Era dos Festivais: uma parábola', de Zuza Homem de Mello. Lembrei-me dela pela similaridade entre a atitude de Raduan Nassar, hoje, e a atitude, não só do psicanalista Roberto Freire, mas de todos os atingidos por uma imposição autoritária dos golpistas de então.
Aquela não foi a primeira e nem a única vez que o establishment foi confrontado durante a ditadura de 64.
Não dá pra esquecer que 1972 é um dos anos mais violentos do regime militar. Tempos muito sombrios. E, mesmo assim, houve, como hoje, quem se negasse a permanecer calado.

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