terça-feira, 24 de agosto de 2010

carta testamento


Há exatos 56 anos, em 24 de agosto de 1954, o presidente Getúlio Vargas apontou uma garrucha para o próprio coração e puxou o gatilho. Encerrava-se com aquele ato, não apenas a vida do presidente da república, mas uma crise fomentada pelas forças conservadoras que, muito provavelmente, desencadearia em um golpe militar e a derrubada do governo.
Há um consenso que o suicídio de Getúlio Vargas adiou o golpe, que acabaria sendo dado 10 anos depois em 1964. A dramaticidade do ato foi completada pela carta testamento, escrita por Vargas na noite anterior e lida por João Goulart no enterro do presidente. A Carta Testamento é um dos mais importantes documentos do século 20 e talvez o mais impactante.


"Mais uma vez, a forças e os interesses contra o povo coordenaram-se e novamente se desencadeiam sobre mim. Não me acusam, insultam; não me combatem, caluniam, e não me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes.

Sigo o destino que me é imposto. Depois de decênios de domínio e espoliação dos grupos econômicos e financeiros internacionais, fiz-me chefe de uma revolução e venci. Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o regime de liberdade social. Tive de renunciar. Voltei ao governo nos braços do povo. A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho. A lei de lucros extraordinários foi detida no Congresso. Contra a justiça da revisão do salário mínimo se desencadearam os ódios. Quis criar liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobrás e, mal começa esta a funcionar, a onda de agitação se avoluma. A Eletrobrás foi obstaculada até o desespero. Não querem que o trabalhador seja livre.

Não querem que o povo seja independente. Assumi o Governo dentro da espiral inflacionária que destruía os valores do trabalho. Os lucros das empresas estrangeiras alcançavam até 500% ao ano. Nas declarações de valores do que importávamos existiam fraudes constatadas de mais de 100 milhões de dólares por ano. Veio a crise do café, valorizou-se o nosso principal produto. Tentamos defender seu preço e a resposta foi uma violenta pressão sobre a nossa economia, a ponto de sermos obrigados a ceder.

Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo, renunciando a mim mesmo, para defender o povo, que agora se queda desamparado. Nada mais vos posso dar, a não ser meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida.

Escolho este meio de estar sempre convosco. Quando vos humilharem, sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado. Quando a fome bater à vossa porta, sentireis em vosso peito a energia para a luta por vós e vossos filhos. Quando vos vilipendiarem, sentireis no pensamento a força para a reação. Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio respondo com o perdão.

E aos que pensam que me derrotaram respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue será o preço do seu resgate. Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História."

(Rio de Janeiro, 23/08/54 - Getúlio Vargas)

domingo, 8 de agosto de 2010

nina simone - i love(s) you porgy

émile zola

Émile Zola (1840-1902) foi mais que um escritor dito, naturalista. Zola foi aquilo que poderíamos chamar de um observador e militante atento do seu tempo. Em “J’Accuse” (Eu acuso), um artigo em formato de carta endereçada ao presidente da república e publicado no jornal L’Aurore em 13 de janeiro de 1898, colocou abaixo toda a
credibilidade do Judiciário do Conselho de Guerra francês que condenou injustamente o capitão do exército francês de origem judaica Alfred Dreyfus de traição. O artigo inaugurou uma discussão que extrapolaria o território francês e avançaria por muitos anos, naquilo que ficou conhecido como o Caso Dreyfus.
Mas o propósito desta postagem é lembrar de um Émile Zola, quase quatro décadas antes da publicação de J’Accuse, um jovem jornalista e crítico de arte, engajado em defender e fazer entender aos conservadores, que uma nova leva de artistas e um movimento novo estava surgindo no cenário das artes plásticas. Ingres e Delacroix estavam mortos. Pissarro, Cézanne, Manet, Degas entre outros, estavam rompendo as barreiras do academicismo naquilo que mais tarde ficou conhecido como Impressionismo. Para lembrar desse Zola mordaz e irônico, retiro do livro “A Batalha do Impressionismo”, edição da Paz e Terra, a carta

Ao Sr. F. Magnard, Redator do Figaro
Meu caro colega,
Peço-lhe a gentileza de fazer inserir estas poucas linhas de retificação.
Trata-se de um de meus amigos de infância, de um jovem pintor cujo talento vigoroso e pessoal estimo de maneira especial.
O senhor recortou, em Europe, um trecho de prosa onde o assunto era um tal sr. Sésame, que teria exposto, em 1863, no Salão dos Recusados(*), “dois pés de porco em cruz”, e que neste ano teria tido recusada uma outra tela intitulada "O grogue de vinho".
Confesso ao senhor que tive uma certa dificuldade para reconhecer, sob a máscara que haviam colado em seu rosto, um de meus camaradas de colégio, o sr. Paul Cézanne, que não tem nenhum pé de porco em sua bagagem artística, pelo menos até este momento. Faço esta restrição, pois não vejo a razão de não se pintarem pés de porco como se pintam melões e cenouras.
Com efeito, o sr. Cézanne teve, juntamente com muitos outros, duas telas recusadas este ano: O grogue de vinho e Embriaguez. O sr. Arnold Mortier resolveu divertir-se com esses quadros e descreveu-os como esforços de imaginação que correspondem bem ao seu espírito. Sei muito bem que tudo isso não passa de uma agradável brincadeira, com a qual não devo me preocupar. Mas o que posso fazer? Nunca pude compreender este singular método de crítica que consiste em zombar de confiança, em condenar e ridicularizar algo que nem mesmo se viu. Faço, pelo menos, questão de dizer que as descrições do sr. Arnold Mortier são inexatas.
Até o senhor, meu caro colega, acrescenta em boa-fé o seu grão de sal: o senhor está “convencido de que o autor pode ter colocado em seus quadros uma idéia filosófica”. Esta é uma convicção deslocada. Se o senhor quiser encontrar artistas filósofos, dirija-se aos alemães, ou até mesmo a nossos belos sonhadores franceses. Mas saiba que os pintores analistas, e a jovem escola que tenho a honra de defender, contentam-se com as vastas realidades da natureza.
Aliás, depende somente do sr. de Nieuwerkerke a decisão de que "O grogue de vinho" e "Embriaguez" sejam exposto. O senhor deve saber que um grande número de pintores acaba de assinar uma petição pedindo o restabelecimento do Salão dos Recusados. Talvez um dia o sr. Arnold Mortier tenha a oportunidade de ver as telas que julgou tão levianamente. Acontecem tantas coisas estranhas...
É verdade que o sr. Paul Cézanne nunca se chamará sr. Sésame, e que, haja o que houver, ele nunca será o autor de “dois pés de porco em cruz”.
Seu colega devotado.
Emile Zola


(*) -Nota minha - O Salão de Artes era uma tradição na França desde o século 17. Em 1863 por ocasião de protestos de muitos artistas e por determinação do Imperador Napoleão III, foi instituído o “Salão dos Recusados” como uma exposição paralela que passaria a receber posteriormente, muitos dos artistas impressionistas. O Salão dos Recusados acabou se tornando assim, importante marco para um novo desenvolvimento pictórico que desembocaria na arte moderna.

(lá em cima, Zola retratado por Manet)