sexta-feira, 26 de outubro de 2007

sobre a leveza


Há alguns temas que sempre me retornam. “Leveza” é um deles. Joguei por curiosidade a palavra no google e, naturalmente, muitos linques sobre o Milan Kundera e o seu livro “A insustentável leveza do ser” vieram à tona. Li o livro há muitos anos e lembro de ter gostado, mas de tê-lo achado pretensiosamente filosófico. Assisti anos depois o filme dirigido por Philip Kaufman e também gostei, apesar de achá-lo um tanto quanto deslocado do livro. O tema central é sobre o absurdo da existência humana, que, segundo Kundera, cria a insustentável leveza do ser. De qualquer forma, compartilho a pesquisa que fiz, colando abaixo as três primeiras partes do livro e depois com alguns trechos selecionados por um blog chamado “óbvius”, além de um comentário do Ítalo Calvino.

A LEVEZA E O PESO 1

A idéia do eterno retorno é uma idéia misteriosa, e uma idéia com a qual Nietzsche muitas vezes deixou perplexos outros filósofos: pensar que tudo se repete da mesma forma como um dia o experimentamos, e que a própria repetição repete-se ad infinitum! O que significa esse mito louco? De um ponto de vista negativo, o mito do eterno retorno afirma que uma vida que desaparece de uma vez por todas, que não retorna, é feito uma sombra - sem peso, morta de antemão; quer tenha sido horrível, linda ou sublime, seu horror, sublimidade ou beleza não significam coisa alguma. Uma tal vida não merece atenção maior do que uma guerra entre dois reinos africanos no século XIV, uma guerra que nada alterou nos destinos do mundo, ainda que centenas de milhares de seres tenham perecido em excruciante tormento. Algo se alterará nessa guerra entre dois reinos africanos do século XIV, se ela porventura repetir-se sempre, retornando eternamente? Sim: ela se tornará uma massa sólida, constantemente protuberante, irreparável em sua inanidade. Se a Revolução Francesa se repetisse eternamente, os historiadores franceses sentiriam menos orgulho de Robespierre. Como, porém, lidam com algo que jamais se repetirá, os anos sangrentos da Revolução transformaram-se em meras palavras, teorias e discussões; tornaram-se mais leves que plumas, incapazes de assustar quem quer que seja. Há uma diferença infinita entre um Robespierre que ocorre uma única vez na história e outro que retorna eternamente, decepando cabeças francesas. Concordemos, pois, em que a idéia do eterno retorno implica uma perspectiva a partir da qual as coisas mostram-se diferentemente de como as conhecemos: mostram-se privadas da circunstância atenuante de sua natureza transitória. Essa circunstância atenuante impede-nos de chegar a um veredicto. Afinal, como condenar algo que é efêmero, transitório? No ocaso da dissolução, tudo é iluminado pela aura da nostalgia, até mesmo a guilhotina. Não faz muito tempo, flagrei-me experimentando uma sensação absolutamente inacreditável. Folheando um livro sobre Hitler, comovi-me com alguns de seus retratos: lembravam minha infância. Eu cresci durante a guerra; vários membros de minha família pereceram nos campos de concentração de Hitler; mas o que foram suas mortes comparadas às memórias de um período já perdido de minha vida, um período que jamais retornaria? Essa reconciliação com Hitler revela a profunda perversidade moral de um mundo que repousa essencialmente na inexistência do retorno, pois, num tal mundo, tudo é perdoado de antemão e, portanto, cinicamente permitido.



2

Se cada segundo de nossas vidas repete-se infinitas vezes, somos pregados à eternidade feito Jesus Cristo na cruz. É uma perspectiva aterrorizante. No mundo do eterno retorno, o peso da responsabilidade insuportável recai sobre cada movimento que fazemos. É por isso que Nietzsche chamou a idéia do eterno retorno o mais pesado dos fardos (das schwerste Gewicht). Se o eterno retorno é o mais pesado dos fardos, então nossas vidas contrapõem-se a ele em toda a sua esplêndida leveza. Mas será o peso de fato deplorável, e esplêndida a leveza? O mais pesado dos fardos nos esmaga; sob seu peso, afundamos, somos pregados ao chão. E, no entanto, na poesia amorosa de todas as épocas, a mulher anseia por sucumbir ao peso do corpo do homem. O mais pesado dos fardos é, pois, simultaneamente, uma imagem da mais intensa plenitude da vida. Quanto mais pesado o fardo, mais nossas vidas se aproximam da terra, fazendo-se tanto mais reais e verdadeiras. Inversamente, a ausência absoluta de um fardo faz com que o homem se torne mais leve do que o ar, fá-lo alçar-se às alturas, abandonar a terra e sua existência terrena, tornando-o apenas parcialmente real, seus movimentos tão livres quanto insignificantes. O que escolheremos então? O peso ou a leveza? Parmênides levantou essa mesma questão no sexto século antes de Cristo. Ele via o mundo dividido em pares opostos: luz/escuridão, fineza/rudeza, calor/frio, ser/não-ser. A uma metade da oposição, chamou positiva (luz, fineza, calor, ser); à outra, negativa. Nós poderíamos achar essa divisão em um pólo positivo e outro negativo infantilmente simples, não fosse por uma dificuldade: qual é o positivo, o peso ou a leveza? Parmênides respondeu: a leveza é positiva; o peso, negativo. Tinha ou não razão? Essa é a questão. Certo é apenas que a oposição leveza/peso é a mais misteriosa, a mais ambígua de todas.


3

Há muitos anos venho pensando em Tomas, mas somente à luz dessas reflexões pude vê-lo claramente. Eu o vi postado junto à janela de seu apartamento, olhando através do pátio para as paredes do outro lado, sem saber o que fazer. Ele conhecera Teresa umas três semanas antes, numa cidadezinha tcheca. Não haviam passado sequer uma hora juntos. Ela o acompanhara até a estação, aguardando a seu lado até que ele embarcasse no trem. Dez dias mais tarde, foi visitá-lo. Fizeram amor no dia em que ela chegou. À noite, ela caiu de cama com febre e, gripada, passou uma semana inteira no apartamento dele. Tomas acabou por nutrir um amor inexplicável por aquela completa desconhecida; ela lhe parecia uma criança, uma criança que alguém colocara num cesto de vime revestido de piche e enviara rio abaixo, para que Tomas o apanhasse às margens de sua cama. Teresa ficou com ele uma semana, até recuperar-se, regressando em seguida para sua cidade, a uns duzentos quilômetros de Praga. E chegou então o momento que mencionei há pouco e que vejo como a chave de sua vida: postado junto à janela, ele olhava por sobre o pátio para as paredes defronte, ponderando. Devia chamá-la de volta a Praga para sempre? Temia a responsabilidade. Se a convidasse, ela viria, oferecendo-lhe a própria vida. Ou devia evitar uma aproximação? Nesse caso, ela permaneceria sendo uma garçonete num restaurante de hotel de uma cidade do interior, e ele jamais a veria de novo. Queria ou não que ela viesse? Olhando por sobre o pátio para as paredes defronte, ele procurava por uma resposta.


(...)

Olhando por sobre o pátio para as paredes sujas, Tomas percebeu que não tinha a menor idéia se aquilo era histeria ou amor. E afligiu-se por, numa situação na qual um homem de verdade saberia de imediato como agir, estar vacilando e privando de seu sentido os momentos mais belos que já vivera (ajoelhado à beira da cama, pensando que não sobreviveria se ela morresse). Irritou-se consigo próprio, até perceber que, na verdade, era bastante natural que não soubesse o que queria. Jamais nos é possível saber o que queremos, pois, vivendo uma única vida, não podemos compará-la a nossas vidas anteriores, ou aperfeiçoá-la em vidas futuras. Era melhor ficar com Teresa ou sozinho? Não há como testar qual decisão é a melhor, porque não há base para comparação. Vivemos as coisas conforme elas se apresentam, desavisados, feito um ator entrando frio em cena. E de que vale a vida, se o primeiro ensaio para ela é ela própria? É por isso que a vida é sempre como um esboço. Não, "esboço" não é bem a palavra, porque um esboço constitui-se das linhas gerais de alguma coisa, a base de uma pintura, ao passo que esse esboço que é nossa vida é um esboço de coisa alguma, linhas gerais de pintura nenhuma. Einmal ist keinmal, Tomas diz a si mesmo. O que só acontece uma vez, afirma o provérbio alemão, melhor seria que não tivesse acontecido. Se temos uma única vida para viver, melhor seria não ter vivido.

sobre a leveza (continuação)

Sobre o livro, Italo Calvino escreveu:
"O peso da vida, para Kundera, está em toda forma de opressão. O romance mostra-nos como, na vida, tudo aquilo que escolhemos e apreciamos pela leveza acaba bem cedo se revelando de um peso insustentável. Apenas, talvez, a vivacidade e a mobilidade da inteligência escapam à condenação -- as qualidades de que se compõe o romance e que pertencem a um universo que não é mais aquele do viver" Recordando alguns momentos da obra: "...Enquanto as pessoas são novas e as partituras musicais das suas vidas ainda só vão nos primeiros compassos, podem compô-las em conjunto e até trocarem temas (como Tomas e Sabina trocaram o tema do chapeu de coco). Porém, quando se conhecem numa idade mais madura, as suas partituras musicais já estão mais ou menos acabadas e cada palavra, cada objecto, tem um significado diferente na partitura de cada uma..." "Para Sabina, viver significa ver. A visão encontra-se limitada por duas fronteiras: Uma luz de tal modo intensa que nos cega e uma obscuridade total. Talvez seja daí que lhe vem a repugnância por todos os extremismos. Os extremos marcam a fronteira para lá da qual não há vida, e, tanto em arte como em política, a paixão do extremismo é um desejo de morte disfarçado." "... Franz é forte, mas a força dele está unicamente voltada para fora. Com as pessoas com quem vive, com aqueles que ama, é muito fraco. A fraqueza de Franz chama-se bondade. [...] Então perguntou a Franz: 'E porque é que de tempos a tempos não te serves da tua força contra mim?- Porque amar é renunciar à força', disse Franz, com duçura.Sabina percebeu duas coisas: primeiro, que aquela frase era bela e verdadeira; segundo, que, com aquela frase, Frans acabara de se desvalorizar para sempre na sua vida erótica" "Mas o que acontecera ao certo a Sabina? Nada. Deixara um homem porque queria deixá-lo. Esse homem tinha vindo atrás dela? Tinha querido vingar-se? Não. O seu drama não era o drama do peso, mas o da leveza. O que se abatera sobre ela não era um fardo, mas a insustentável leveza do ser."

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

reabrindo o empório


Caros e caras,
acho que é hora de dizer que este blog é resultado da má definição, caracterizadas por alto sinal em T2, com tênue realce pós-contrastes, comprometendo parte da (minha) medular óssea da porção antero-medial do tálus e da porção póstero-lateral do calcâneo, assim como do maéolo tibila medial, podendo corresponder a fratura incompleta do microtrabeculado ósseo. Não poderia deixar de mencionar, e por que não, agradecer, as más definições das(minhas) fibras dos ligamentos fíbulo talar e subtalar e – não poderia esquecer – do ligamento tíbio talar anterior pouco espessado, o qual apresenta alteração do sinal habitual e pelo seu sugestivo espessamento cicatricial. Não fosse este meu tornozelo – no popular – “bichado” -que me obrigou a um repouso com o pé imobilizado-, e o amigo Marcel não teria, em visita cordial, criado este blog, obra que eu jamais saberia como fazê-la. Hoje o pé já pisa firme no chão, mas o blog, reconheço, tropeça pelos caminhos. No início imaginei que postaria algumas fotos e os meus poemas e ponto. Mas foi tomando outra forma e o que é mais marcante: sem nenhuma regularidade. Nem com relação à peridiocidade; nem com relação aos temas; nem com relação a nada. Tenho lá os meus quase dez leitores – caso consideremos que aquilo que posto neste empório, sejam matérias de leituras –, e, potencialmente, tenho mais de 200 milhões de leitores espalhados pelo mundo (“minha pátria é minha língua”!), fruto do poderio colonizador dos nossos bravios e desbravadores irmãos portugueses. Vamos à luta, então! Esqueçamos, ora pois, a minha medular calcânea óssea, e também os meus potenciais leitores de além mar, para que eu possa dizer apenas e tão somente, que estou tentando reabrir este empório empoeirado e que gostaria de deixá-lo aberto, com todos os seus penduricalhos, à mercê dos olhares dos que passam na rua, das moscas dos dias e dos vaga-lumes das noites e, principalmente, dos meus quase dez fregueses para que eu possa receber as suas generosas caixinhas.., digo, contribuições. Escrevamos pois!

terça-feira, 2 de outubro de 2007

Resenha crítica: Dois Irmãos, de Milton Hatoum

Dois Irmãos
Eu não a vi morrer, eu não quis vê-la morrer. Mas alguns dias antes de sua morte, ela deitada na cama de uma clínica, soube que ergueu a cabeça e perguntou em árabe para que só a filha e a amiga quase centenária entendessem (e para que ela mesma não se traísse):”meus filhos já fizeram as pazes?”. Repetiu a pergunta com a força que lhe restava, com a coragem que a mãe aflita encontra na hora da morte. Ninguém respondeu. Então o rosto quase sem rugas de Zana desvaneceu; ela virou a cabeça para o lado, à procura da única janelinha na parede cinzenta, onde se apagava um pedaço do céu crepuscular.



Caim e Abel. Esaú e Jacó. Pedro e Paulo. Omar e Yaqub. A primeira dupla desta lista, a mais conhecida, integra uma das histórias mais antigas de desavenças entre irmãos, contada no livro do Gênesis da Bíblia e que resultou, como sabemos, na morte de Abel nas mãos de Caim. Esaú e Jacó, irmãos gêmeos e também personagens bíblicos, inspiraram Guy de Maussapant, assim como Machado de Assis, que nos relatou a trajetória de Paulo e de Pedro, estes, que iniciaram, ainda no ventre, uma disputa que seria eterna. Da mesma forma, Omar e Yaqub se odeiam, e é a eles que Zana, a mãe, se refere no trecho citado acima, que é, ao mesmo tempo, o início e o final da saga de Dois Irmãos, o segundo romance do escritor manauara Milton Hatoum, em reedição econômica lançado recentemente pelas Cia das Letras. A história se passa em Manaus na primeira metade do século 20, beliscando o início da ditadura nos anos 60, quando o avanço militar passa a ocupar a já cosmopolita capital do Amazonas. Manaus é, aliás, um grande personagem do romance, descrita quase sempre além das suas superfícies; nas suas entranhas, vilarejos, ruelas, rios e mangues; nas suas praças, na vida dos seus habitantes, nas mudanças que todo desenvolvimento desordenado acarreta às grandes cidades. Este é o cenário em que Hatoum nos apresenta a trajetória de imigrantes árabes como Galib e sua filha Zana, que se casa com o também imigrante Halim, e da família que os dois irão formar: os gêmeos Yaqub e Omar, personagens centrais da história; Rânia, a filha mais nova, que estabelece uma relação de amor indistinto com os irmãos; Domingas, a empregada índia e aquele que é o narrador, este que deixo ao leitor, descobrir por si mesmo, na construção temporal que cada página propiciará. A narrativa de Hatoun, influenciada sobretudo por Flaubert, Balzac e Faulkner, constrói uma trama em que o “contar uma história” é cercado por filigranas poéticas. O enredo trata, basicamente, do duelo fraternal, mas envolto por inúmeras subjetividades, como a nostalgia de Halim, que apaixonado pela esposa, perde a atenção dela para os filhos, sobretudo Omar, boêmio, impetuoso e sempre protegido por Zana. Rânia, a filha mais nova, dedicada à família e que toma às rédeas dos negócios. Yaqub, tímido e conservador, acaba se tornando mais independente, e se ausenta da vida familiar e assim do cenário da história nos momentos em que se auto-afirma, como na primeira viagem que faz, ainda adolescente para o Líbano, supostamente para separá-lo de Omar e, posteriormente, quando decide estudar em São Paulo - se negando a ter qualquer ajuda da família - onde se torna um reconhecido engenheiro. Há ainda o narrador, como um observador presente e atento, e, ao mesmo tempo, com um certo distanciamento que lhe permite um olhar analítico sobre o enredamento da história que nos conta. Hatoun percorre um trajeto na sua narrativa em que as tenções se apresentam sem que haja uma necessidade de dissipá-las. As histórias não fluem no texto de forma que devam apresentar resoluções. Ficam espaços abertos, mas não há falta. Ficam possibilidades e não certezas.



Milton Hautom, filho de pai libanês muçulmano e de mãe brasileira -mas filha de mulçumano-, nasceu em Manaus, em 1952. Estudou Arquitetura na Universidade de São Paulo. É professor de literatura na Universidade Federal do Amazonas e professor convidado na Universidade da Califórnia, em Berkeley. Relato de um Certo Oriente, seu primeiro romance (Prêmio Jabuti 1990), foi publicado nos Estados Unidos, na França, na Itália, na Alemanha, em Portugal e na Suíça; entre outros países. Dois Irmãos é o seu segundo romance e, da mesma forma, foi publicado em vários países, rompendo mais uma fronteira em 2003, quando foi traduzido para o árabe.




gê cesar de paula